As pessoas revolviam os montes de entulho, tentando encontrar os cadáveres dos desaparecidos, agindo como dementados sem rumo. Numa das barracas de emergência hospitalar, a movimentação de Espíritos encarnados e desencarnados era muito grande.
Encontrava-me em observação, quando veio até o nosso mentor uma senhora desencarnada com traços do norte da Europa, remanescente da sua última jornada terrestre, pedir ajuda.
Sintetizou a rogativa, informando que o neto, jovem de vinte e cinco anos, visitava a região com frequência, acompanhado de amigos do seu país, para desfrutarem das regalias do prazer que ali eram concedidas em larga escala aos seus visitantes.
Portador de caráter vil, usuário de drogas químicas, atraía as jovens inexperientes e sonhadoras locais, pelo porte atlético e pela habilidade no surf em que se destacava no meio de todos. Em razão desses requisitos tornara-se um conquistador insensível, que se comprazia em corromper as vítimas, empurrando-as para a drogadição e o comércio carnal. Financiava a viagem de algumas interessadas em aventuras e comercializava-as com organizações mafiosas que as transformavam em escravas do sexo no seu e noutros países por onde circulava. Logo, porém, as moças ludibriadas chegavam às cidades nórdicas da Europa, tomavam-lhes os passaportes e explicavam-lhes que teriam que pagar o empréstimo das passagens e de tudo quanto a partir dali lhes fosse oferecido.
O tipo exótico das moças, quase adolescentes, em relação aos padrões europeus, na maioria fascinava a clientela viciada, e quando se davam conta era demasiado tarde para qualquer providência salvadora. Já se lhe tornara habitual a conduta infame em que se comprazia, mas era seu neto, o infeliz, por quem rogava socorro. A avozinha, pois era o Espírito que pedia ajuda, tentara inspirá-lo à mudança de comportamento, mantivera reiterados encontros na esfera dos sonhos, não logrando qualquer resultado saudável.
Comovendo-se, silenciou ante o benfeitor atento e completou:
— Estou informada por Espíritos generosos do labor que o nobre amigo vem realizando com a sua equipe, e, embora se trate de um caso especial, suplico a ajuda possível.
"Ele encontrava-se no Hotel X, à hora do sismo, e foi arrebatado pela onda gigante que o carregou com o edifício em desmoronamento. Ficara quase soterrado no entulho, e só agora, vários dias após, fora encontrado ainda com vida e conduzido à emergência naquele improvisado hospital erguido por estrangeiros."
Dr. Charles convocou-nos a nós, a mim e ao Oscar, para que o acompanhássemos, enquanto os demais prosseguiriam no afã estabelecido. Quando chegamos ao centro cirúrgico, observamos os muitos atendidos em estado grave.
Colocado no aparelho para os estudos computadorizados, os médicos concluíram pela delicadeza do seu quadro. Encontrava-se em coma, com uma vasta área cerebral comprometida pelos traumas cranianos sofridos, pelos golpes do desmoronamento da construção e pelo choque do paredão de água.
Dr. Charles observou-o, e explicou à anciã:
— Nosso jovem encontra-se muito gravemente afetado sem a menor possibilidade de recuperação. Os largos dias em que esteve sem assistência de qualquer natureza comprometeram-lhe outros órgãos e a bomba cardíaca destrambelhou-se sob o esforço exaustivo, tendo ocorrido, nesse período, duas paradas que mais comprometeram o cérebro em razão da anóxia decorrente.
— O mais grave — acentuou — é a sua condição espiritual.
Vimos o Espírito ainda preso ao corpo debatendo-se nas mãos fortes de dois adversários cruéis que o ciliciavam com vergastadas, ao mesmo tempo em que o ódio que exteriorizavam era absorvido pelo organismo da vítima, especialmente por intermédio dos chakras cerebral, solar e cardíaco, afetando-lhe o debilitado coração.
Um deles, cujo semblante era uma caraça demoníaca, ameaçava:
— Morrerás, infame! Nós te queremos aqui, quanto antes, para punir-te pelo mal que fizeste às nossas filhas. Como podes destruí-las no comércio da carne, utilizando-te da sua ignorância, para que fruas prazeres insaciáveis, na tua doença moral?! Nunca te perdoaremos por invadires nossos lares e desgraçares aquelas a quem amamos. Se houver justiça divina, nós seremos os seus intermediários e a aplicaremos conforme o fazes com as tuas vítimas.
Estrondosas gargalhadas de loucura faziam-se acompanhar a cada acusação.
O outro estertorava, à medida que também o acusava:
— Estrangeiro maldito, abutre infeliz que degradas todos aqueles que passam pelo teu caminho de misérias! Porque somos pobres, pensas, cinicamente, que podes corromper as nossas meninas, levando-as para a escravidão nas tuas terras? Pagarás os crimes, como nunca poderias imaginar, porque dispomos de outro poder que não tens, miserável!
E contínuas exprobrações eram enunciadas entre dentes rilhados e mãos agitadas em atitude agressiva.
Outros também apresentavam queixas acusatórias, cercando o desditoso com as suas faces transtornadas, o que lhe produzia infinito pavor, levando-o a debater-se em pranto e contínuos desfalecimentos.
Surpreso, olhei o mentor, que me explicou:
— Nossos irmãos estão tentando matá-lo, isto é, procuram impedir que se assenhoreie do corpo, intoxicando com as vibrações do ódio o órgão cardíaco até o mesmo cessar de pulsar. No seu estado atual de fraqueza não suportará por mais tempo a ingestão dos fluidos venenosos eliminados pelos adversários, e que vem absorvendo, piorando o estado ao somar-se aos demais fatores de desequilíbrio.
Depois de ligeira reflexão silenciosa, acentuou:
— Ele necessita, porém, de sobreviver.
Não deu mais explicações, exceto, informando:
— Sem que recupere a lucidez, terá uma longa existência vegetativa de reparação.
Ato contínuo, acercou-se dos litigantes, condensando o perispírito, até permitir-se ser percebido pelos algozes, e pôs-se, serenamente, a dialogar com os mesmos.
— Reconheço — afirmou com tonalidade bondosa na voz — a justeza das vossas argumentações em referência ao paciente. No entanto, a aplicação da justiça compete a Deus, que conhece em profundidade cada um de nós. Jamais saberemos como corrigir alguém, quando dominados pelo ódio e desejosos de vingança. Nosso jovem é leviano, vem cometendo crimes hediondos, sem dúvida. Arrebatá-lo pela morte, não será igualmente um crime perverso e sem justificativa, porque o mal, de maneira alguma, se insere no contexto da vida?!.
"Considerando-se, portanto, a circunstância, a vossa disposição de discipliná-lo, de retê-lo no Além-túmulo, a fim de apressardes a sua punição, violenta as Leis Soberanas, porque ninguém tem o direito de tomar nas mãos a clava da justiça."
Furibundos, ambos reagiram, enquanto outros, agitados, entregavam-se à gritaria, tentando gerar perturbação.
— Não necessitamos de juiz estrangeiro — revidou um deles. — Conhecemos as nossas leis e, por elas, pelo Alcorão, assim como através da Xariá sabemos como conduzir-nos, aplicando as chibatadas correspondentes ao crime, e são vários os crimes de desonra e degradação de vidas por ele cometidos, portanto, na Terra, punidos com a pena de morte, o que estendemos até aqui. Agradecemos a interferência de cristãos em nossas decisões, permitindo-nos continuar com os nossos propósitos, porquanto estamos dentro da Lei.
— Isso poderia parecer correto — alvitrou o benfeitor resoluto. — Nada obstante, o Alcorão também fala de misericórdia, e que somente Alá é justo, benevolente e sábio, podendo perdoar os mais perversos infratores. Maomé reconhece a grandeza de Jesus e da Sua doutrina, portanto, a verdade tem caráter universal e, no caso em tela, não importa que a interferência seja por intermédio de muçulmanos ou de cristãos, mas que esteja baseada nos sentimentos de misericórdia e de amor, ambos de caráter divino, portanto, inderrogáveis.
"Não nos interessa a sua colaboração, mas sim a concretização dos nossos objetivos, que são inamovíveis.
"Compreendemos, perfeitamente, a vossa dor, assim como a de outros tantos. Ei-la campeando em toda parte nestes tormentosos dias que enfrentamos. Somente a sabedoria divina conhece as razões para tudo quanto vem sucedendo desde o momento do infausto acontecimento sísmico. Comove-nos o sentimento de solidariedade dos países de diferentes partes do mundo aqui presentes, contribuindo em favor das vítimas da ocorrência terrível. Nenhuma preocupação com a crença, a moral, a conduta dos que se encontram em aflição. Há, em todos, o saudável desejo de ajudar, de demonstrar amor e respeito pelo sofrimento do próximo.
"A mesma atitude solidária estabelece-se além das formas físicas sob a égide do Amor.
"Desde que estais insensíveis à compaixão, apelamos para a misericórdia de que todos necessitamos diante de Deus. Por acaso, considerai-vos isentos de erros, atravessastes a caminhada terrestre sem haverdes contraído dívidas ou gravames ante as situações penosas de outros?
"Desse modo, fazei com o perturbador da vossa paz, conforme gostaríeis que fizessem em relação a vós outros, caso estivésseis no seu lugar."
A palavra era repassada de imensa compaixão e ternura, envolvendo em dúlcidas vibrações de harmonia os agressores, que ficaram algo aturdidos momentaneamente, logo retornando ao ataque.
— Ofereci-vos a bênção da caridade para com o criminoso e reagis — voltou a afirmar o mentor —, agora vejo-me na contingência de apelar para outros recursos de que podemos dispor em situações como esta.
Silenciando, pôs-se a orar em profunda concentração, no que o acompanhamos de bom grado. Suavemente uma claridade os envolveu, e Ana, que continuava com o archote na mão direita erguida, depô-lo no solo, e acercando-se de ambos dentro da luz superior, abraçou-os com bondade, enquanto o médico desligava o Espírito submetido á pressão dos adversários.
Subitamente, os dois adversários foram dominados por estranho torpor, e amparados pela enfermeira espiritual, foram colocados no solo, a fim de serem transferidos por generosos auxiliares convocados mentalmente pelo Dr. Charles que, então aplicou energias saudáveis no enfermo em estado comatoso. Vimos o encaixar do Espírito no corpo, e logo depois um estertor sacudiu-o todo, transformando-se em uma convulsão.
— Ele sobreviverá. — informou o médico sábio. — Receberá os recursos hábeis e, em breve, poderá ser transferido para o lar, de experimentará a longa trajetória da recuperação.
Quando retornávamos para os labores sob nossa responsabilidade, e porque me parecesse oportuno, pedi-lhe licença, e interroguei-o:
— Pelo que depreendo, os adversários espirituais tramavam-lhe a desencarnação, não é verdade?
Sempre bondoso e atento, o orientador respondeu-me:
— Podemos chamar essa agressão como uma tentativa de homicídio espiritual.
— Isso ocorre com frequência? — interroguei-o, surpreso.
— Sim — esclareceu — com mais frequência do que se imagina. Nunca devemos esquecer-nos de que este é o campo das causas, o mundo espiritual, onde se originam as ações e feitos que se materializam na Terra. Fonte de sublimes inspirações, também origina reações devastadoras, quando os seus autores se encontram nas faixas primárias da evolução. Em colônias de dor e de sombra, mentes perversas elaboram programações desditosas que inspiram os de ambulantes carnais, insensibilizando-os e auxiliando-os nas suas desvairadas aplicações.
"Em parceria psíquica, hipnotizam aqueles com os quais conviveram na esfera espiritual, esses desalmados perseguidores do Bem, e utilizam-nos com uma frieza que nos choca, procedente, desse modo, das suas construções mentais devastadoras.
"Detido o Espírito encarnado nas malhas vibratórias dos seus desafetos, em razão dos comprometimentos morais para com eles, torna-se sujeito à sua injunção infame, experimentando dores acerbas que podem provocar no corpo desastres orgânicos. A mente é portadora das energias que se movimentam através da aparelhagem carnal, e quando são deletérias produzem efeitos compatíveis. Da mesma forma que uma emoção forte, em estado de vigília danifica o organismo e provoca distúrbios muito graves na maquinaria fisiológica, aquelas que têm lugar durante o parcial desprendimento pelo sono, pelo coma ou situações equivalentes, repercutem nas células, danificando-as ou harmonizando-as se defluem das alegrias e bênçãos que se vivenciem.
"Tudo quanto ocorre no soma procede da psique, portanto, do Espírito, que é o condutor do carro material.
"Nossos irmãos, embora vinculados à doutrina muçulmana, conhecem a realidade da vida após a morte e comportam-se qual ocorre também com incontáveis cristãos desencarnados e inumeráveis cidadãos comuns crentes ou não na imortalidade. Não são poucos aqueles que se aperfeiçoam em comportamentos perniciosos antes da reencarnação, a fim de poderem dar-lhes expansão durante a jornada orgânica.
"A realidade é a mesma, variando as formas de exteriorização, assim facultando que todos estejamos envolvidos pelas suas poderosas manifestações. Mais uma razão para que sejam divulgados os conteúdos imortalistas a todas as criaturas, para melhor poderem conduzir-se enquanto vige o período da reencarnação. O conhecimento da verdade é libertador, porquanto se insculpe no pensamento e nas ações, orientando o ser no seu desenvolvimento iluminativo."
Nesse ínterim, chegamos à nossa área de atividades habituais e prosseguimos no atendimento aos irmãos desesperados, que a morte surpreendera sem aviso prévio, e que, mergulhados no fascínio do corpo, nunca se deram permissão para reflexionar em torno da inevitável presença da morte.