Quase inaudível, escutava-se uma sinfonia que chegava de longe, tão suave como nunca se ouvira antes.
Aquela era uma região aprazível e abençoada. O lago, espelho imenso refletindo o céu, emoldurava-se de praias largas, adornadas de árvores vetustas, e da grama verde que parecia escorregar dos aclives cortados por ribeirinhos, nos quais se amontoavam as casas de pedras, que se multiplicavam nos vilarejos, povoados e cidades.
A Galileia, bela e simples, fora o cenário escolhido pelo Cantor, para apresentar a Sua mensagem e embalar o mundo com a Sua voz.
Em Cafarnaum todos se conheciam. Suas praias e ancoradouros sempre regurgitavam de pescadores, de negociantes, de homens da terra.
A profissão tradicional de amantes do mar passava de pais para filhos, de geração em geração.
Homens rudes e generosos, face ao trabalho a que se dedicavam, confraternizavam com vinhateiros, agricultores, as gentes humildes, raramente se envolvendo com as questões discutidas na sinagoga, desinteressados dos problemas das classes abastadas.
A vida pulsava naquelas áreas, no mercado, e os viajantes de outras províncias ali narravam os acontecimentos dos lugares distantes, causando deslumbramento.
As caravanas que venciam o Jordão, no rumo dos países fabulosos, seguiam outros caminhos, e os acontecimentos ali permaneciam inalterados.
A natureza bordara a paisagem com tons escarlates, e as boninas misturavam-se com as papoulas de haste esguia salpicando cores em toda parte.
Os problemas do cotidiano repetiam-se quase monótonos, sem alterarem o ritmo de vida das pessoas.
Por isso mesmo, percebia-se, sem palavras, que algo estava por acontecer.
A notícia chegou aos ouvidos do povo como uma eclosão de alegrias, embora confusamente.
Narrava-se que um homem singular e profeta aparecera e informara ser o Filho de Deus.
Não trazia insígnias, nem se fazia acompanhar de séquito algum deslumbrante.
Surgira inesperadamente e manifestara-se a pessoas diferentes, esclarecendo que viera fundar um reino de amor e de justiça para os deserdados e sofredores.
O mundo sempre esteve repleto de deserdados e sofredores. Marginalizados, em todos os tempos, buscavam consolo e a herança da paz.
Nunca houve quem os quisesse escutar ou socorrer, e, formando multidões, viviam escassamente, na miséria, na sordidez, no abandono...
Alguém interessar-se por eles, era-lhes uma grande surpresa, desconcertante ventura a que não se encontravam acostumados.
A boa nova, portanto, espalhou-se com velocidade, adiantando-se que, no sábado, Ele falaria num monte próximo a Cafarnaum.
Simão, também conhecido como Cefas, era irmão de André, ambos pescadores.
As suas preocupações restringiam-se às necessidades básicas da família, da vida. Sem aspirações maiores, limitavam-se à faina da pesca, à venda dos frutos do mar e aos deveres consequentes de uma existência simples.
Os amigos narraram-lhes as novidades, acrescentando, naturalmente, detalhes da própria imaginação.
As criaturas anelam por salvadores, que lhes solucionem os problemas, ajam no momento dos desafios e atuem por elas. Há uma latente irresponsabilidade, que deseja viver o trabalho, sem o sofrimento.
Em razão disso, a esperança de paz sempre se turba com a ambição da ociosidade.
Simão era homem céptico, sem sutilezas de comportamento.
Portador dos conflitos humanos naturais, enrijecera a fibra moral na atividade a que se entregava, desinteressando-se praticamente de tudo mais.
Ouvindo as informações e sentindo o entusiasmo ingênuo dos amigos, experimentou um desconhecido ressentimento do estranho Profeta, que certamente era mais um mistificador que vivia explorando a ignorância das massas.
Recusou-se a ir ouvi-LO.
Algo, porém, remoía-se-lhe intimamente, e uma estranha curiosidade empurrou-o, pela madrugada do sábado, a empreender a marcha na direção do lugar onde Ele iria apresentar-se.
Respirando o ar balsâmico e frio do amanhecer, o pescador viu-se surpreendido pelo número de pessoas silenciosas que seguiam pela estrada real.
Os rostos apresentavam-se expectantes uns, tensos outros; em todos, porém, estavam os sinais da esperança.
Enfermos de vários matizes eram conduzidos: cegos, coxos, paralíticos carregados, obsidiados, dementes, anciãos e outros cujas doenças eram a idade avançada, o desgaste, o abandono irrecuperável...
Um misto de piedade e ira tomou Simão.
Como as pessoas lhe pareciam estúpidas, entregando-se a qualquer aventureiro que surgisse — pensava, contrariado.
Quando atingiu o acume do cerro, a multidão era densa.
Dali podia-se ver o mar querido, refletindo o fogo do dia nascente.
Procurou ouvir alguns comentários. Todos falavam sobre as próprias necessidades e expectativas de receberem ajuda, solução para os problemas.
Naturalmente, acercou-se das primeiras filas, que renteavam uma larga pedra, qual se fora um palco natural no imenso cenário da natureza.
À medida que o Sol bordava de luz a terra, o vozerio aumentava e as queixas misturavam-se nas bocas dos sofredores.
Subitamente Ele apareceu. Esguio e belo, o rosto magro e queimado adornava-se de barba e cabelos à nazarena, onde brilhavam olhos transparentes como duas estrelas engastadas. A túnica descia-lhe até os pés, tecida na roca, em tom carregado de mármore...
Majestático, a Sua figura impôs silêncio sem dizer nada.
Uma exclamação de júbilo escapou dos lábios da multidão ao vê-LO.
Após os momentos de expectativa, Ele falou:
— A hora é esta, para a grande revolução pelo Reino de Deus.
Enquanto no mundo, a criatura somente experimenta aflições, porque tudo a quanto se aferra é efêmero. São passageiros os prazeres, o poder, a fortuna, a saúde, o próprio corpo... Essa ilusão de gozo é a geradora dos sofrimentos, em razão da transitoriedade dele e de como passam todas as coisas, por mais sejam aguardadas. Quando chegam e começam a ser fruídas, já se encontram em deperecimento, de passagem, deixando memórias, frustrações, ansiedades novas, amarguras...
O homem, prudente e sábio, que pensa no amanhã, reserva-se bens duradouros, que lhe favorecem tranquilidade e repouso. Esses bens imorredouros são as ações de amor, que proporcionam paz, o esforço para domar as paixões inferiores, que oferece a felicidade.
Fez um silêncio oportuno, a fim de facultar entendimento, reflexão, aos ouvintes.
Logo mais, prosseguiu:
— Eu vos convido a virdes comigo, para a fundação da Nova Era, que se instalará nos corações, modificando as estruturas atuais e instaurando o primado do amor...
Quando ia prosseguir, uma mulher, que trazia nos braços uma criança cega, rogou:
— Senhor, cura minha filha, e eu Te seguirei.
Os olhos da multidão n"Ele cravados, voltaram-se na direção daquela que se atrevera a interrompe-LO.
Por encontrar-se atrás de Simão, e porque, trêmula, chorava, o pescador tomou-lhe a menina nos braços e avançou até a primeira fila.
Jesus acercou-se e mergulhou, nos olhos de Simão, o seu doce olhar, sem uma palavra. No entanto, emocionado, ele pareceu escutar no íntimo, a Sua voz, que dizia : Eu te conheço Simão, desde ontem...
Acompanhou-lhe a mão, cujos dedos tocaram os olhos mortos da criança, e ouviu-O falar: Vê, filha, em nome de meu Pai.
A criança começou a chorar e gritar: Eu vejo, eu enxergo!
A mãe avançou e arrebatou-a, estuante.
Quando Ele desceu o braço, a manga da túnica rociou o tórax de Simão, que estremeceu, mergulhado na luz dos Seus olhos, e ali ficou, paralisado, havendo perdido o contato com o mundo sensorial.
Ao retornar, à realidade, sob a ardência do dia, estava a sós; todos se haviam ido; a hora avançava.
Simão, profundamente comovido, desceu a Cafarnaum.
Já não era o mesmo. Nunca mais voltaria a ser o que fora. O que se passou nele, modificou-lhe a vida para todo o sempre, a partir daquele momento.
Interrogando-se, desejava saber de onde e desde quando O conhecia e O amava...
Na acústica da alma, ressoava-lhe a voz, confirmando, desde ontem...
André, os amigos notaram-lhe a modificação e a súbita tristeza que lhe refletia no rosto.
O encontro com a verdade liberta e algema o ser. Desencarcera-o do mundo, e aprisiona-o à Vida. Produz júbilo e traz melancolia. É pão que alimenta, mas, nutre somente a pouco e pouco até satisfazer plenamente.
Simão fez-se taciturno, como quem aguarda, embora permanecesse gentil e cumpridor dos deveres.
Foi nesse estado de espírito que, em formosa manhã, enquanto organizava as redes com o irmão, foi surpreendido pela presença do Amigo, que se lhes acercou e, com uma voz inesquecível, convidou-os:
— Segui-me, e eu vos farei pescadores de homens. (*)
Sem nenhuma contestação, eles abandonaram as redes e, embevecidos, dominados pela Sua presença, O seguiram.
Amo que chama os servos, senhor que conduz escravos, Ele os tomou e fez de suas vidas um poema de felicidade, com eles escrevendo a mais comovedora história do mundo, enquanto lançava as fundações do Reino de Deus nos corações.
Pescadores de almas, Ele os fez!
Mateus - 4:19 (Nota da Autora espiritual)