Certamente, as atividades prosseguiam no ritmo abençoado das múltiplas realizações de amor e de socorro, de estudos e de desenvolvimento moral em nossa comunidade.
Grupos de Espíritos operosos partiam em direção ao planeta terrestre, comprometidos com tarefas especiais, enquanto outros retornavam jubilosos após os deveres retamente cumpridos.
Os departamentos de educação e de saúde integral permaneciam ativos, enquanto a movimentação na Colônia Redenção diminuía, proporcionando aos que aqui se encontravam domiciliados, o recolhimento aos lares ou aos educandários especializados, mantendo o clima de harmonia em toda parte.
Suave brisa perpassava pela Natureza em festa, perfumada pelas flores exuberantes do jardim onde nos encontrávamos observando a mãe-Terra ornando-se das claridades artificiais, que pareciam, à distância, diamantes coruscantes cravados no acolchoado de veludo azul-marinho que a envolvia.
Havíamos silenciado por um pouco, depois das considerações que entretecêramos sobre os últimos acontecimentos que sacudiram a sociedade terrena, após o tsunami que resultara do choque de placas tectônicas no abismo das águas do Oceano Indico.
O obituário estarrecedor chegara-nos ao conhecimento, enquanto estávamos reunidos em oração pelas vítimas inermes da dolorosa tragédia sísmica.
A administração da nossa comunidade destacara duas centenas de especialistas em libertação dos despojos carnais, a fim de cooperarem com os Guias da Humanidade, auxiliando aqueles que foram atingidos pela fúria das ondas gigantescas e das suas consequências.
Dialogáramos a respeito dos sobreviventes, assinalados pelas dores superlativas advindas, pelas epidemias que já se instalavam na região onde os cadáveres se decompunham, pela miséria defluente das perdas materiais e pela saudade inominável dos seres queridos que foram arrebatados pela morte.
A fase mais angustiante se apresentava naqueles dias, quando as sequelas cruéis do infortúnio despedaçavam os sentimentos dos sobreviventes, desanimados e aturdidos.
Tivéramos ocasião de acompanhar em projeções muito fiéis em nosso auditório as cenas terrificantes, comovendo-nos todos até às lágrimas.
Também nos sensibilizaram a movimentação e o interesse dos países civilizados providenciando ajuda imediata ao povo desnorteado, todos contribuindo com valiosa colaboração capaz de amenizar os flagelos que vergastavam as vítimas, hebetadas umas pelos choques violentos e outras quase alucinadas pelo desespero e pela desesperança.
Sabíamos que milhares de Espíritos nobres haviam acorrido em auxílio de todos, empenhando-se em resgatá-los das Entidades infelizes e vampirizadoras, interessadas no fluido vital dos recém-desencarnados.
Simultaneamente, tomávamos conhecimento das providências que haviam sido estabelecidas para diminuir os transtornos comportamentais que se iam alastrando naqueles que ficaram na roupagem carnal.
À distância, o globo terrestre movia-se quase imperceptivelmente no oceano infinito da musicalidade cósmica. Emoções variadas tomaram-nos a ambos, permitindo-nos exteriorizar os sentimentos de amor e de ternura pela querida Gaia, bela, mágica e sofrida, no seu périplo de alguns bilhões de anos, a fim de poder tornar-se o lar feliz de outros tantos bilhões de habitantes que dependiam dos seus recursos para a elevação moral e espiritual.
— Quanto lhe devíamos! — refletimos — Quantas novas experiências nos seriam necessárias no futuro para torná-la um planeta de regeneração?
— Ao mesmo tempo — considerava em silêncio — quantas dores alanceariam os humanos sentimentos, de modo que neles ocorresse a mudança de conduta mental, moral e emocional, tornando as criaturas dignas da libertação das heranças enfermiças do passado, inaugurando no íntimo o Reino dos Céus.
Nesse ínterim, suave musicalidade chegou-nos aos ouvidos, oriunda do santuário próximo onde se ensaiavam as partituras da Missa em si menor, de Johann Sebastian Bach, originalmente composta para orquestra, mas ali apresentada em órgão magistralmente dedilhado com o coral infantil de nossa comunidade. Experimentamos a sensação de que, naquele momento, os Céus comunicavam-se com a nossa Colônia.
Realmente, essa ocorrência tinha lugar, porque o edifício reservado às celebrações do amor e da fé religiosa encontrava-se iluminado com tonalidades prateadas e azuis suaves.
Particularmente chamou-me a atenção o movimento das ondas sonoras, que obedeciam ao ritmo suave e doce do órgão e das vozes infantis.
Quase extasiado, ia falar ao amigo Oscar, quando lhe percebi chorando discretamente.
Na perfeita identificação mental que se nos fez espontânea, pude perceber-lhe o pensamento em retrospecto, apresentando-o quando criança habitando os Alpes austríacos, numa capela aldeã de madeira, ouvindo a mesma composição em velho órgão. As memórias cresciam-lhe, modificando o cenário e pude vê-lo correndo pelos prados verdes numa área assinalada por casario de madeira pintada entre montanhas cobertas pelo gelo eterno e o solo salpicado por miúdas flores, mesclando papoulas e rosas trepadeiras coloridas sobre a grama verdejante.
O caleidoscópio evocativo do caro amigo projetou-se-me na tela mental, levandome à evocação da própria infância, sendo dominado, agora, pelas paisagens da terra brasileira e baiana em Sol e alegria, onde o Senhor da Vida me honrou com a recente reencarnação. Toda a magia mística desse amável povo, a sua simplicidade e sofrimento resignado, especialmente o dos indígenas e afrodescendentes, suas esperanças e aspirações povoaram-me o espírito, embalado pela melodia sublime.
Não saberia dizer o tempo que transcorreu, à medida que a noite avançava.
Tornando à realidade, meu amigo e nós outro parecíamos haver despertado de um sonho feliz, e quase sem nos darmos conta, estávamos com as mãos unidas, sorrindo e agradecendo a Deus.
Oscar demonstrou haver tomado conhecimento da minha percepção psíquica das suas lembranças, e, sem delongas, explicou-me:
"Minha mãe era professora e meu pai, médico, dedicados totalmente ao bem da comunidade humilde.
"Quando a Áustria foi invadida, em inesquecível noite de horror, nosso lar foi devassado por soldados das tropas de elite (SS) e fomos arrastados e atirados em um camburão que nos levou a Viena, dali seguindo em um trem superlotado ao campo de concentração, de trabalhos forçados e de extermínio em Auschwitz, atendendo ao programa da solução final que Hitler impôs e foi executado por Himmler e seus asseclas.
"Desnecessário dizer que, chegando ao campo, e após sermos separados, homens, mulheres, idosos, enfermos e crianças, meus pais foram levados à câmara de gás e, posteriormente, jogados nos fornos crematórios."
Fez uma pausa natural, permitindo-me sugerir-lhe que não se recordasse da ocorrência perversa. Com voz pausada e triste, ele afirmou-me que o fazia como catarse libertadora das fixações profundas.
Logo prosseguiu:
— Em razão de encontrar-me com mais de 16 anos fui poupado para os trabalhos forçados ao lado de outros mortos-vivos que se movimentavam automaticamente, tentando manter-se.
"Por dois anos de horrores, fui transferido para outro campo não menos cruel, Sobibor, na chamada operação Heinbard, quando então, felizmente, terminou a guerra e fomos libertados.
"Conduzidos a um campo de refugiados na Áustria, embora a quase destruição de Viena, Deus havia-me permitido a honra de sobreviver ao Holocausto, e recomeçar a experiência humana valiosa, de que então me dei conta.
"Muito marcado pelas dores físicas e morais, vivenciando noites de pesadelos que pareciam nunca terminar, optei pelo celibato, a fim de não perturbar a alma querida que comigo se consorciasse.
"Em homenagem aos meus genitores e às vítimas do extermínio, passei a frequentar a Sinagoga, sem perder a emoção do amor a Jesus, o que parece paradoxal.
"Dei prosseguimento aos meus estudos, doutorando-me em Medicina pela Universidade de Viena, e dedicando-me, dentro da minha formação moral, à prática missionária dessa doutrina responsável pelo combate às doenças, aos sofrimentos.
"Aos cinquenta anos de idade, retornei ao Grande Lar, vivendo numa comunidade espiritual judaica onde resido com os meus pais, havendo sido convocado para a atividade que deveremos atender na condição de irmãos em humanidade."
Sorriu com um delicado véu de tristeza na face, e distendeu-me a mão, pronunciando com emoção a palavra hebraica Shalon (Paz).
— Novos rumos!
— Rumos novos! — redargui, eufórico.
Deveríamos retornar à Terra-mãe amada em atividades especiais, conforme programação elaborada pelos Benfeitores da nossa comunidade. Sensibilizados e agradecidos ao Senhor pelas reflexões e emoções experimentadas, despedimo-nos, rumando na direção dos nossos aposentos.
Novos rumos! — Segui ao lar reflexionando em torno da gravidade a respeito das ações a desenvolver, logo concluindo que o Senhor nos daria Seu apoio e Sua inspiração para as atividades que seriam realizadas em Seu nome.
Divaldo Pereira Franco/Manoel Philomeno de Miranda.